Henrique Alves Costa, O Senhor Cineclube
Manuel Vitorino“Se fiz coisas importantes, não dei por elas”, disse, ao JN, em 1987, Henrique Alves Costa, entrevista a seis colunas, várias fotos do cinéfilo e cineclubista afável, generoso, um viajante atento ao mundo das imagens, ainda o cinema mudo dava os primeiros passos na Invicta Film; depois, o sonoro, fitas em nitrato, 35mm, projetadas numa cabine tipo “Cinema Paraíso”, antigo Salão -Jardim Trindade, de mão dada com o pai, seu mentor e inspirador desta fascinante viagem ligada ao Cinema, à tal “fábrica de emoções” cheia de magia e ilusão.
Conheci o Henrique a meio dos anos 70, no Cineclube do Porto, naquela época uma casa de Resistência e talvez, única Escola de Cinema no Porto, lugar onde várias gerações aprendiam a ver cinema, a discutir uma obra fílmica, o percurso estético de um determinado realizador, seu enquadramento histórico, social e político. E onde podiam consultar livros e revistas na sua fabulosa biblioteca, mais de 5000 publicações ligadas à história do Cinema. Foi sempre uma das pessoas mais importantes na vida do Clube e sempre mostrou a maior disponibilidade para encontrar soluções nos momentos de maior crise, instabilidade financeira. Nunca perdeu o sorriso, a afabilidade, o “savoir- faire” e, coisa rara, sabedoria de ouvir a opinião dos outros. Em vez de certezas, dúvidas, inquietações, desejos de mudar e encontrar soluções de futuro. Recordo-o muitos vezes, a ouvir falar sobre alguns filmes históricos, vida e obra de Aurélio Paz dos Reis, floricultor, republicano, cineasta, Raul de Caldevilla, fundador da Invicta Filmes, Abel Gance, Jean Epstein, vanguardistas franceses, Lang e Murnau, figuras cimeiras do expressionismo alemão, sem contar com alguns dos seus eleitos: Stroheim, Dreyer, Eisenstein, Chaplin, Manoel de Oliveira, seu amigo, cúmplice, admirador.
Um parêntesis para avivar memórias: Manoel de Oliveira esteve várias anos impedido de filmar grandes projectos cinematográficos, em parte devido à falta de apoios e financiamentos, mas também por ter sido considerado um cineasta mal visto pelo Estado Novo, com a Censura a cortar alguns “atrevimentos” e depois, preso durante 10 dias nos calabouços da PIDE, onde conhece o escritor Urbano Tavares Rodrigues.
Após o belíssimo “Douro, Faina Fluvial” (1931) segue-se um período em que, apenas, consegue filmar três documentários, “Aniki-Bobó” (1942) “O Pintor e a Cidade” (1956) e “O Acto da Primavera” (1963) e só em 1971, ou seja, 40 anos depois, arranja os meios financeiros necessários para levar por diante a primeira grande obra de ficção, “O Passado e o Presente”.
Perante a cegueira do Poder e indiferença generalizada da intelectualidade lisboeta, Henrique Alves Costa lutou pelo reconhecimento da sua obra e fê-lo como pôde: denunciando, escrevendo textos na Imprensa portuguesa e estrangeira, intervindo em palestras, festivais internacionais, encontros de cineclubistas. O resto é conhecido. Depois, Oliveira filmou sem parar até ao final da vida, 106 anos, ainda com três filmes em esboço, prémios e distinções em todo o Mundo – agraciado em Berlim, Cannes e Veneza -, elogiado e aplaudido lá fora, nem sempre admirado cá dentro. Foi sempre assim e assim será…
Partir do zero
Homem de causas, Henrique Alves Costa envolvia-se facilmente com a arte do cinema, a sua paixão desde criança. Em vez da indiferença típica de uma certa elite bem pensante, crítica no sofá e incapaz dum gesto na resolução dos problemas, o agitador cultural sempre encontrou no Cineclube a sua trincheira e, como poucos, desbravou novos caminhos para o Cinema Português, sempre em crise de financiamento, de mecenas, de apoios à produção, exibição, formação de novos públicos.
Foi assim em 1967, um ano histórico em que por sua iniciativa se organizou a Semana do Cinema Português, fundamental para a discussão dos principais problemas da classe, realizadores, técnicos, operadores de câmara, críticos e cineclubistas à volta da mesma mesa em busca de soluções capazes de darem um novo impulso ao modo de fazer filmes. Sem apoios financeiros – apenas promessas da Gulbenkian, mais tarde concretizadas -, Alves Costa puxou da imaginação e, em colaboração com a Cooperativa Árvore, organizou um leilão de obras de arte, cuja receita serviu para pagar despesas inerentes ao Encontro. Onde existia uma dificuldade, a imaginação impunha-se e contaminava tudo e todos. “Sempre gostei de partir do zero absoluto e pôr as coisas a andar”, disse na entrevista.
Apesar dos “crónicos constrangimentos orçamentais”, o Encontro fez-se, foi um êxito e, três anos depois, em 1970, algumas coisas já tinham mudado, mas o cinema continuava numa encruzilhada. Como a “incerteza não foi debelada” promoveu outro encontro de críticos, realizadores e técnicos. Uma vez mais, a sua mentalidade irrequieta, sonhadora, insubmissa. Em 1976, organizou as Primeiras Conversações Cinematográficas Luso-Espanholas , espécie de cimeira ibérica com diversos realizadores, críticos e jornalistas de ambos os países , ao mesmo tempo que vai escrevendo para jornais e revistas, desdobrando-se em contactos com vista ao aparecimento de novos projectos culturais.
Como “toda a gente tinha vontade de fazer coisas”, um grupo de jovens desloca-se à casa de Henrique Alves Costa, com o propósito de obter o seu apoio ao Cinanima/Festival Internacional de Cinema de Animação de Espinho. Foi em 1977 e, como sempre acontecia, não só incentivou, como escreveu várias crónicas sobre o certame, em diferentes jornais, entre os quais, no JN. Testemunhei o encontro na companhia de alguns amigos, entre os quais, André de Oliveira e Sousa e alguns elementos da então comissão organizadora, Agostinho Chaves, Eduardo Oliveira e Rui Brás. No final, todos estavam felizes pelo apoio prestado e, uma vez mais, a tal “ideia maluca” deu lugar, anos mais tarde, ao maior festival do género em Portugal. Aliás, na sua casa, espécie de museu, milhares de livros, muita arte, obras da artista Rosa Ramalho à mistura com pinturas, também funcionou como “embaixada cultural”, ponto de encontro de muitos cineastas portugueses, Manoel de Oliveira e António Reis, bem como estrangeiros, Volker Schlondorff e sua esposa Margarethe von Trotta, Jean Rouch, entre muitos outros realizadores, críticos, jornalistas, gente ligada ao mundo do cinema.
“Cenas Tristes”
Em 1977, muita coisa já tinha mudado no país político e também no Cineclube do Porto, eleições bastante polarizadas, duas listas concorrentes, palco de divergências político-partidárias. Cansado de assistir a algumas “cenas tristes”, Alves Costa sente-se agastado e magoado com o ambiente reinante. E decide bater com a porta, chegando a desabafar com os seus amigos mais próximos: “Agora vou brincar com outros meninos”. (1) Sem tempo a perder organizou, no Museu Nacional de Soares dos Reis (MNSR), uma série de sessões de cinema com filmes cedidos por embaixadas, instituições internacionais. E nos salões onde estavam pinturas de Silva Porto, Aurélia de Sousa, Marques de Oliveira, Henrique Pousão, o projecionista de serviço (a cargo do meu querido e saudoso amigo António Cerdeira) foram exibidos dezenas de filmes sempre a abarrotar de público interessado, uma das quais, memorável, com filmes de animação do realizador canadiano Norman McLaren.
Antes do filme começar, Alves Costa fazia sempre uma pequena palestra e, em poucos minutos, com o seu conhecimento e poder comunicação conseguiu captar o vasto auditório e explicar com pedagogia a importância do cinema de McLaren. Nestes tempos de grande efervescência cultural, ainda sonhou com a instalação da Cinemateca do Porto, talvez a grande utopia não realizada, por culpa dos sucessivos responsáveis pela pasta da Cultura que, deram sempre o “dito pelo não dito”, faltaram sistematicamente às promessas públicas e o sonho ficou eternamente adiado…
Por entre dezenas de livros editados, entre os quais, “Memória do Cinema Português”, “Eric von Stroheim, Génio Insubmisso de Hollywood”, “Da Lanterna Mágica ao Cinematógrafo”, inúmeras participações em congressos, encontros de cineclubes, textos, reflexões, ensaios em vários jornais e revistas, não resisto em contar mais um episódio da sua eterna juventude e modo de estar na vida. No princípio dos anos 70, em Setembro, no decorrer do célebre Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, a organização promoveu uma cerimónia de boas-vindas numa unidade hoteleira da cidade. A tarde estava de sol, dezenas de convidados, cineastas nacionais e estrangeiros, críticos, jornalistas.
No meio da conversa e quando toda a gente estava de copo na mão, Alves Costa diz “até já” ao grupo de amigos e, para espanto, regressou em fato de banho e saltou para a piscina. A assistência bateu palmas e uma vez mais, o puto traquina de cabelos brancos quebrou regras, barreiras, convenções sociais.
O cinéfilo e crítico nasceu com a República, viveu em Ditadura e morreu em Democracia. Tinha 77 anos e ao longo da vida fez coisas realmente muito importantes para o seu tempo, arrojadas num país cercado e policiado, castrador de mentalidades, avesso à modernidade. Repartiu o seu saber por várias instituições, entre as quais a Cooperativa Árvore, aderiu ao grupo fundador do CPC/Cineclube do Porto, com Hipólito Duarte, Fernando Condesso, Guilherme Gomes Fernandes e Fernando Gonçalves Lavrador, Manuel de Azevedo, Mário Bonito, Luís Neves Real, Júlio Gesta, entre outros.
Foi um Homem de vanguarda, espírito independente, muita rebeldia à mistura e enquanto cineclubista recusou sempre alinhamentos político-partidários. Com esta atitude recebeu algumas incompreensões, logo ultrapassadas perante a sua craveira e prestígio internacional. Ao longo dos anos, conciliou a sua actividade profissional, despachante de Alfândega do Porto, com a Cultura, conferências, debates, publicação de ensaios, livros, crónicas de jornal para o Jornal de Notícias, colaborador assíduo da secção Palco (uma página inteira sobre Arte e Cinema, críticas de A. Roma Torres e do jornalista Sérgio de Andrade, então director do JN) onde tanto escrevia sobre crítica de filmes, como crónicas de certames europeus, festivais de Cinema de Animação de Annecy e d´Avignon, onde participava habitualmente como convidado.
Quando partiu deixou um vazio difícil de preencher. Fez tudo o que queria fazer na vida e viveu sempre apaixonado por filmes do outro mundo, “A Paixão de Joana d´Arc”, Dreyer, “A Regra do Jogo”, Renoir; “Lágrimas e Suspiros”, Bergman; “Marcha Nupcial”, Stroheim; “O Mundo a Seus Pés”, Welles; “Matou”, Lang, uma lista interminável de títulos da História do Cinema mundial. O Cineclubismo deste país deve-lhe muito e, para mim, foi um exemplo de cidadania e de coragem, um Homem sempre à frente do seu tempo, um construtor de pontes com a cidade, a arte e a cultura. A sua jovialidade e conhecimento da história do cinema continuam a pairar na minha memória afectiva e sentimental.
(1) “Agora vou brincar com outros meninos”
A frase “Agora vou brincar com outros meninos” tem um contexto preciso. Henrique Alves Costa já andava desagradado com a Direção do Cineclube do Porto pelo facto de adiar indefinidamente o registo legal dos novos Estatutos do clube, discutidos e aprovados em sucessivas sessões de uma Assembleia Geral Extraordinária convocada para o efeito. Essas sessões, foram muito valorizadas pelas oportunas e sábias intervenções de Alves Costa e, nos novos Estatutos, consagrava-se uma certa autonomia das secções do Cineclube, bem como, alterações ao processo eleitoral. Embora não assumidamente, a Direção pretendia que as eleições seguintes fossem feitas de acordo com os antigos Estatutos, desprezando assim o imenso trabalho realizado na Assembleia.
Porém, a gota de água que fez transbordar o copo deveu-se ao facto de, após a Direção ter concordado com a realização, no Cineclube do Porto, do II Encontro do Cinema Português (o Primeiro Encontro também lá foi realizado, em 1967, com resultados históricos para o cinema português) ter “dado o dito pelo não dito” seguindo, porventura, uma “orientação superior”, entretanto surgida. Acontece que, Alves Costa já tinha dado a cara pelo Encontro, como intermediário qualificado, perante um conjunto muito significativo de realizadores portugueses que contestavam o controlo partidário em que tinha caído o Instituto Português de Cinema com as suas famosas “unidades de produção” que se pretendiam substituir ao modelo das cooperativas de produção cinematográfica que eles (os cineastas) defendiam.
André de Oliveira e Sousa, Manoel de Oliveira e Alves Costa, encontraram-se com António-Pedro Vasconcelos (que veio propositadamente ao Porto para a preparação do Encontro) e que, face às dificuldades que lhe foram apontadas, disse: “Faremos o Encontro no Porto, nem que seja sentados no chão da Praça da Batalha”. Felizmente, para os cineastas portugueses, o Cine-Teatro Pinheiro Chagas, nas Caldas da Rainha, abriu-lhes as portas para a realização do tão almejado Encontro que, teve lugar nos dias 27, 28 e 29 de Junho de 1975, com uma representação muito significativa de cinéfilos do Porto, nomeadamente de sócios do Cineclube que lhes tinham fechado as portas. Alves Costa e Manoel de Oliveira também foram e a partir daí, a ruptura aconteceu.
Manuel Vitorino
Jornalista
Nasceu no Porto (Portugal). Estudou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui a Pós-Graduação em Direito da Comunicação, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Escreveu durante anos sobre cinema no jornal «O Primeiro de Janeiro» e depois, trabalhou quase 25 anos, no Jornal de Notícias. Depois da cidade, gosta do Futebol Clube do Porto, mas também de caminhadas (adora o vale do rio Bestança, no Norte do País) e viajar pelo Mundo.
A Galiza é uma região onde gosta sempre de voltar e a Itália o seu destino de eleição. Adora Arte, música clássica, mas também música popular, cinema e ópera, museus, cidades com património. E escrever sobre as cidades, as suas gentes, gastronomia, culturas e tradições.
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