O Douro de Torga continua belo.

Manuel Vitorino

O Douro de Torga continua a encantar 

Já terminaram as vindimas no Douro, mas os turistas continuam a chegar em busca da paisagem belíssima, património secular, degustações de néctares de excelência, um dos melhores do Mundo. Nas quintas, produtores, enólogos e gente ligada às adegas, fazem contas à produção. “Sim, vamos ter um ano muito bom, excelente. O novo mundo vinícola começa aqui”, reconhece José Alves, dono da Quinta da Rede, em Mesão Frio, curvas e contracurvas a serpentear o rio, terra de grandes solares setecentistas, parte integrante do Douro, Património Mundial da Humanidade, imortalizado por Torga  , João Araújo Correia, A.M Pires Cabral, Alves Redol e Domingos Monteiro , escritor esquecido, fabuloso contador de histórias, mais de 30 livros publicados, o primeiro dos quais de poesia, aos 16 anos, com prefácio de Pascoaes .

Barqueiros é topónimo e freguesia de antigos arrais e marinheiros de barcos rabelos. Na manhã de Outono, a paisagem estava cheia de neblinas e, por instantes, recordei António Cruz, o maior aguarelista do Douro, imortalizado em “O Pintor e a Cidade”, de Manoel de Oliveira e depois, a “inesquecível homenagem”, prestada em 2002, pelo Museu do Douro, ao autor de “Douro, Faina Fluvial”, cujo filme foi exibido em diversos concelhos do Douro, Pinhão, Tua e Alfândega do Porto. 

Paisagem

Em Barqueiros, a geografia do lugar contagiou toda a gente. “A exibição do filme foi um sucesso enorme. Tudo aconteceu ao ar livre e toda a gente de Barqueiros participou na festa”, testemunhou Gaspar Martins Pereira, historiador, um dos maiores investigadores do Douro, longa bibliografia dedicada à região, aos vinhos e às quintas durienses.Podia ficar por outras navegações, mas o meu guia digital indica-me andar próximo do Centro Interpretativo do Barco Rabelo  , um edifício adaptado da antiga escola primária, onde desaguam outros saberes e ofícios, o transporte de pipas de vinho até às caves do Porto [em Vila Nova de Gaia] recordações da comunidade, fotografias, documentos, vídeos, uma viagem lúdica e pedagógica sobre um rio e um tempo marcado por naufrágios e morte. “Temos documentação desde 1796, onde consta a existência de 54 arrais e 293 marinheiros. Por estes números, pode-se verificar a importância desta freguesia, entreposto, fiscalização e verificação do vinho do Porto”, contou Patrícia Campelo, colaboradora deste espaço de memórias.

A minha peregrinação sobre Mesão Frio, “porta de entrada” para o Baixo Corgo começou a dar os primeiros passos. Porém, além do território, paisagem e gastronomia, o vinho e as vindimas merecem atenções e, por isso, regresso ao ponto de partida, à Quinta da Rede. “Comprei-a por uma questão sentimental, pois passava aqui todos os dias a caminho da Escola. E agora, juntamente com os meus filhos, produzimos vinhos de grande qualidade, cerca de 80 mil garrafas, alguns deles premiados como, por exemplo, o Grande Reserva Branco, 2017”. Quanto à vindima e ao modo como está a decorrer a resposta é eufórica: “Vamos ter um ano Vintage”, confirma José Alves, apostado na sustentabilidade do Planeta, instalação de painéis fotovoltaicos e produção de energias renováveis, novo design e diversificação de produtos, entre os quais, dinamizar a Casa de Cambres   com vista ao fomento do Enoturismo. “O Douro começou aqui [Baixo Corgo] e com as alterações climáticas, vamos continuar a produzir vinhos de grande qualidade em termos de acidez, frescura, elegância”, assegurou.

Douro

Quinta da Rede 

Barco Rabelo

Centro Interpretativo do Barco Rabelo

Degustações de vinhos e visitas a adegas

 O mesmo entusiasmo foi partilhado por Diogo Monteiro, arquitecto, gestor da Quinta de São Bernardo, fundada no séc. XVIII, depois, sucessivamente reestruturada para a produção de vinhos e, desde 2015, vocacionada para o Enoturismo. O novo hotel rural com capacidade para 25 quartos deverá ficar concluído em 2023 e, enquanto tal não acontece, continua a oferta de alojamento, provas e degustações de vinhos, visitas a adegas. “Temos cerca de 15 hectares de vinhas no concelho e o novo projecto de vitivinicultura distribui-se pela Quinta de Água, em Guiães, perto de Galafura. A Quinta fez parte do meu avó [Ademar Vagaroso] e, depois, ficou na posse da família. Este projecto faz parte da minha vida e por isso, tudo farei não só para manter, como alargar cada vez mais este legado patrimonial”.

Por aqui reina o optimismo e a propalada “crise cíclica do Douro” é conceito passadista: “Graças ao investimento no Enoturismo vamos exportar vinhos para os EUA, Brasil e Europa. Queremos fazer parte do mercado da qualidade e não das grandes quantidades. Acreditamos ser este o caminho da Região e, por isso, temos vindo a crescer. A maior validação dos nossos vinhos é feita pela satisfação dos nossos clientes”.

Como em cada canto e esquina existem memórias nesta Quinta construída à beira-rio, os registos indicam, segundo fontes documentais, a instalação do primeiro Marco Pombalino (actualmente, submerso) como testemunho do início da região duriense. “O Baixo Corgo é a entrada para o Douro e por aqui, os barcos rabelos quando desciam o rio, atracavam neste local a caminho dos armazéns de Gaia. Toda a área envolvente à Quinta está cheia de memórias e recordações”, enfatiza Diogo Monteiro.

Na Quinta de Santiago , o tempo também é de vindimas, sem pausas, intervalos, de manhã à noite. Com uma particularidade: os vinhos com a denominação “R4 Vinhos Douro Family” traduz o projecto de 4 irmãos cujas iniciais do nome começa por R (Roberto/ Ricardo/Rafael/Rudolfo) e adega é totalmente comandada por mulheres. “Somos nós que damos subtileza e finesse aos vinhos”, contou Melanie Pereira, enóloga  formada na UTAD que, juntamente, com Joana Maçanita, tentam produzir vinhos de qualidade para todo o Mundo. “A maior parte dos vinhos destinam-se ao mercado nacional, mas estamos a começar a exportar para o Brasil, Suíça, Alemanha, Luxemburgo. As expectativas são boas”.

Sem tempo a perder, os responsáveis da Quinta de Santiago decidiram alargar a oferta ao Enoturismo, talvez a par da cultura do vinho e da uva, a “nova coqueluche” de Mesão Frio. “Temos 150 hectares de terreno espalhados por várias quintas e, este segmento de mercado, está em franca expansão. O turista quando vem ao Douro vem atraído pela paisagem, mas também pelos vinhos e pelo acolhimento caloroso dispensado pelas pessoas”, concluiu a jovem enóloga duriense.

Como há mais, muito mais a descobrir neste “Reino Maravilhoso”,  viajei por caminhos íngremes até à  freguesia de Cidadelhe  , sempre com o Douro a perder de vista e com permissão de entrada na Quinta do Côtto  , da família Montez Champalimaud, primeiros registos com datação do séc. XIV  e alguns séculos depois, no primeiro quartel do séc. XX período dedicado à modernização da adega, produção de vinhos brancos, tintos e vinhos do Porto. Um salto no tempo e, em 2017, nova mudança de geração na gestão, novo impulso no modo de produzir e comercializar vinhos, cerca de 70 hectares de vinha, 250 mil garrafas/ano, um portfólio de marcas reconhecidas internacionalmente, Quinta do Côtto-Grande Escolha,  Quinta do Côtto bastardo e Quinta do Côtto Sousão.

Quinta de San Bernardo

Quinta de São Bernardo

Quinta do Cotto

 Quinta do Cotto

“Colheita está a ser muito boa”

 “A colheita está a ser muito boa e os enólogos referem a existência de vinhos de altíssima qualidade. A nossa empresa ocupa um lugar pioneiro na produção de vinhos e como tal, temos responsabilidades acrescidas. A pandemia afectou o negócio a nível nacional, mas estamos a recuperar o tempo perdido e numa fase de expansão da nossa actividade”, traduz Miguel Champalimaud, gestor da empresa, cicerone desta visita relâmpago a uma das quintas mais emblemáticas do Douro.

A conversa decorre ao sabor do tempo e pela azáfama das vindimas: “Nesta sub-região, com condições atmosféricas mais frescas, temos possibilidades de produzir vinhos mais equilibrados entre acidez, estrutura, taninos e álcool. A frescura do Atlântico ainda chega aqui e como tal, as videiras não estão em stresse durante o dia e à noite arrefecem. Apesar de todas as dificuldades, o Douro tem uma paisagem especial, única no Mundo. Só temos de ser criativos”, sustenta o jovem gestor da Quinta do Côtto.

Descendo ao centro da vila, situa-se a Adega Cooperativa de Mesão Frio, “a primeira da região”, 450 associados, 5000 pipas ano, qualquer coisa como 3 milhões de litros de vinho maduro, entre os quais, 1500 pipas de vinho do Porto e o resto DOC, onde o “crescimento faz-se passo a passo, com sustentabilidade económica e financeira”, assinala Pedro Pires, engenheiro agrónomo e gestor. “A maior parte das pessoas não sabem, mas a nossa Cooperativa serviu de modelo a outras espalhadas pelo país. Porém, temos consciência da nossa geografia, um concelho pequeno, sofrendo os efeitos da desertificação, minifúndio, pequenas parcelas de terreno e daí, a dificuldade no escoamento dos vinhos”, lembrou.

Pese embora o vinho dominar as atenções e centralizar as conversas, não deixei por mãos alheias a paisagem, território, gastronomia, património. A vereadora da Cultura da Câmara de Mesão Frio, Cristina Major, já tinha chamado a atenção para a importância da igreja de São Nicolau, a mais antiga e com lindíssimos altares de talha dourada; o Museu do Triciclo, paixão de Jorge Rodrigues, cerca de 600 exemplares, peças do séc. XIX e outras menos antigas, mas todas com valor histórico, afectivo e patrimonial, uma viagem ao mundo da infância; as arcas tumulares na Igreja de São Nicolau, sem esquecer o castro céltico de Cidadelhe; a ponte Cavalar, em Vila Marim ; ou a torre de Santa Cristina, em Santo André  . “A Câmara tem vindo a fazer um grande esforço para colocar à disposição de quem nos visita uma série de recursos e produtos destinados a promover a região, o vinho e o Douro, a sua paisagem singular e única, a gastronomia, o património histórico e cultural. Mesão Frio é uma terra de gente calorosa e acolhedora”, sublinhou Cristina Major.

Como ainda existem outras descobertas no roteiro, a conversa será retomada mais tarde e a curiosidade, levou-me ao Miradouro de São Silvestre, talvez, o mais apreciado devido ao seu enquadramento na paisagem; depois, um pulo ao Miradouro do Imaginário , o mais recente em forma de barco virado para o rio (os estrangeiros e namorados adoram…) e deixei-me fascinar pela Casa da Vista Alegre, em Barqueiros , a fazer lembrar os tempos da Belle Époque, um chalé em cima da colina com vinhedos à volta, vista privilegiada para o Douro, construída por um emigrante afortunado no Brasil. Podia servir de cenário a um filme romântico, hoje parou no tempo e funciona como memória do passado.

museo do triciclo

Museo do triciclo

Castro

Castro en Mesão Frio

“Hábil narrador”

 A viagem a esta parcela do território duriense não podia terminar sem uma visita à Casa de Quintãs, onde viveu o escritor Domingos Monteiro (1903-1980) nascido em Barqueiros,  dinamizador de longas tertúlias literárias e políticas na sua mansão senhorial debruada sobre o Douro, amigo de Pascoes e de João Araújo Correia, mais tarde, director das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, após a morte de Branquinho da Fonseca. “Foi um hábil narrador”, assinalou João Bigotte Chorão, crítico, ensaísta, autor de vários estudos sobre Camilo. Um parêntesis para acrescentar que, nesta casa povoada de memórias, também cá viveu o escritor Pina de Morais e a sua filha, Graça Pina de Morais, autora de vários romances, entre os quais, o premiado “Jerónimo e Eulália”.

Casa das Quintas

Casa de Quintãs

Domingos Monteiro

Domingos Monteiro

 No livro editado pela Direcção Regional da Cultura do Norte, Viajar Com…Os Caminhos da Literatura”, estabelece-se uma cronologia sobre a vida do escritor, a sua paixão pelo Douro, a caça e a terra, a bibliografia selecionada repartida pela poesia, ficção e romance, “Enfermaria, Prisão e Casa Mortuária” (1943); “Histórias do Dia e da Noite” (1952) e “O Primeiro Crime de Simão Bolandas” (1965) entre muitos outros títulos, todos eles esgotados e traduzidos em várias línguas. Num célebre encontro entre Unamuno  e Domingos Monteiro, o filósofo espanhol dissipou dúvidas quanto ao futuro do poeta e romancista: “Não se pode trair a vocação. Você não pode abandonar a carreira literária”, disse-lhe Unamuno. Escritor esquecido, escritor lembrado. “Já tenho projectos para o futuro e um deles, será retomar os estudos com vista à tese de Mestrado sobre a vida e obra de Domingos Monteiro”, revelou a jovem autarca, por estes dias empenhada na cidadania e na sua carreira académica.

Douro - Duero
Río Douro

 Ainda a viagem não terminou e, como ficou muita coisa para ver, terei de regressar para conhecer outros lugares, paisagens e saborear outras castas da mais antiga Região Demarcada do Mundo. Na volta, trago comigo um livrinho precioso, “Roteiro Sentimental Douro”, de Manuel Mendes, prefácio de Mário Soares e desenhos de Gracinda Marques, reeditado em 2002, pelo Museu do Douro. Será outra viagem, porventura, mais afectiva e emocional, mas também, homenagem ao extraordinário contador de histórias da região duriense.

Manuel Vitorino

Manuel Vitorino

Jornalista

Nasceu no Porto (Portugal). Estudou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui a Pós-Graduação em Direito da Comunicação, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Escreveu durante anos sobre cinema no jornal «O Primeiro de Janeiro» e depois, trabalhou quase 25 anos, no Jornal de Notícias. Depois da cidade, gosta do Futebol Clube do Porto,  mas também de caminhadas (adora o vale do rio Bestança, no Norte do País) e viajar pelo Mundo.
A Galiza é uma região onde gosta sempre de voltar e a Itália o seu destino de eleição. Adora Arte, música clássica, mas também música popular, cinema e ópera, museus, cidades com património. E escrever sobre as cidades, as suas gentes, gastronomia, culturas e tradições.

A pandemia mudou o mundo

máis artigos

♥♥♥ síguenos ♥♥♥