As duas peregrinações que fiz a Santiago ficaram-me guardadas no coração como se tivesse erguido um templo dentro de mim. Posteriormente, ocasiões tem havido de forte impulso para regressar: a Santiago, aos campos que é preciso atravessar, ao templo, ao meu coração. Como uma dimensão do mundo em que vivemos é material, não há como voltar a pôr os pés no chão e a mochila às costas, mas nem sempre o ser consegue libertar-se da obrigação e partir para a acção. Porque, frequentemente, a acção é a obrigação. Assim, a alternativa é reentrar nesse templo já erguido e fazer a peregrinação por dentro. Foi o que fiz há uns anos, em 2014: onze dias de peregrinação poética ao meu interior, que fui registando como se estivesse a fazer o caminho. Tudo isso está numa pequena e obscura página algures perdida na Internet a que de vez em quando regresso peregrinando ou ensaiando um novo peregrinar ou apenas recordando. Nestes últimos dias que decorreram, voltei lá e encontrei o que escrevi naquele que ficou numerado como o décimo primeiro dia:

«Chora e ora. Partilha peixe e pão. E espera.»

Uma foto de Jean-François Ganas ilustra as palavras que neste momento me tocaram como se fossem de hoje. Em tempo de guerras e confusão, tem de haver um tempo de chorar, para que não nos inundemos por dentro. E como nas guerras anteriores, aquelas que já não conhecemos por termos vindo posteriormente, é preciso não arrecadar, pois tudo o que se arrecada apodrece, mas partilhar o que houver. Por vezes pode ser esta a acção que se nos exige. E a partilha também pode ser pela arte e pela criação. 

petit déjeneur de Jean François Ganas

Por vezes parecemos pobres à porta da nossa própria casa suplicando aquilo que só nós podermos dar-nos. Uma página de poemas, uma história recontada, um desenho na folha de um caderno de criança, uma canção embalada pelo corpo, uma dança dervixe como quando eramos crianças e ainda hoje vemos aos mais pequenos em louco rodopiar. E a nossa alma inveja. As crianças existem no mundo para recordar os adultos destas formas tão simples de peregrinar. Como quem partilha pão. Nem sempre a partilha é com o outro, mas existe um outro em nós sedento de receber, ansioso por dar. Às vezes é arte que podemos partilhar, outras apenas desabafo que devemos guardar. Como sempre disse aos meus alunos, nem todo o extravasar é arte. É preciso extrair o pão das pedras. Os alquimistas, e quantos não fizeram esses caminhos até Compostela!, bem o sabiam. Enquanto não for ouro, o metal, há que mantê-lo na forja até à completa transformação em pedra preciosa ou perfumado pão. Entretanto, cada um pelos seus meios, por terra, água, ar ou pelo fogo do coração, que vá fazendo, por sua vontade, o inevitável caminho. Pode ser pedregoso, inclinado, longo, perigoso, mas é sempre mais fácil do que aquele que não se escolheu, ou que não se escolhendo, se colheu.

Risoleta C. Pinto Pedro, Lisboa

Risoleta C. Pinto Pedro, Lisboa

Colaboradora Portuguesa

Risoleta C. Pinto Pedro, nascida em Elvas, é autora nas áreas do romance, novela, conto, poesia, teatro, ensaio, crónica periodística e radiofónica (Antena 2), conto infantil e BD, assim como ópera, canção, cantata e musical, tendo escrito libretos a convite dos compositores Jorge Salgueiro, Paulo Brandão e Helena Romão, com incursões também na escrita para dança (Companhia de Dança Amalgama). Tem mais de vinte obras publicadas, para além de colaboração em revistas, catálogos, manuais e colectâneas. Na ficção recebeu o Prémio Revelação APE/IPBL, O Aniversário, 1994; Ferreira de Castro (A Criança Suspensa 1995), tendo sido duas vezes distinguida na poesia pela Sociedade da Língua Portuguesa. Foi professora de Literatura em várias escolas, nomeadamente, e durante mais tempo, na Secundária Artística António Arroio. Tem escrito e feito conferências sobre as obras de: Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Sebastião da Gama, Bocage e Jaime Salazar Sampaio, entre outros. Mais recentemente, tem estudado, escrito e publicado ensaio sobre a obra dos filósofos Agostinho da Silva (A Literatura de Agostinho da Silva, essa alegre inquietação, 2016) e António Telmo (António Telmo- Literatura e Iniciação, 2018), pela editora Zéfiro. Publicou, recentemente, três livros pela editora Sem Nome: Cantarolares, um Sabor Azul (poesia, 2017), Ávida Vida (poesia, 2018) e A Vontade de Alão (novela, 2019). No prelo, a sair no próximo Janeiro, uma novela a anunciar em breve, e em avançado trabalho editorial, dois livros de poesia, um deles já projectado para meados de 2022.

Blogue: http://aluzdascasas.blogspot.com/

A salvação pelo verde

máis artigos

♥♥♥ síguenos ♥♥♥