O Porto da miña infância.

Manuel Vitorino

“O Porto tem uma atmosfera muito especial. Ainda não perdeu a sua identidade. Ainda vejo lojas tradicionais, bairros antigos, gente boa”, dizia-me, há tempos, um amigo italiano, de Turim que, mal aterrou no Aeroporto Francisco Sá Carneiro ficou deslumbrado pela cidade. “Vim da neve para o sol”, sorriu feliz e contente, mais ainda por provar um saboroso “prato de tripas à moda do Porto” e depois, ter dado um pulo a Serralves e ter-se encantado pelas exposições de arte e fabulosos jardins.

O que tem o Porto de especial? Sim, eu sei que é a melhor cidade do mundo para viver (nasci por aqui e quanto mais viajo, mais apetece voltar às origens) mas quero crer que a cidade de Eugénio, Agustina e Garrett soube juntar património, modernidade, tradição e cultura, sem esquecer a hospitalidade e segurança para vencer outras capitais apostadas no reconhecimento e igualmente cheias de monumentalidade como Paris, Roma, Londres.

A imprensa internacional (jornais e revistas) continua a dedicar ao Porto várias páginas e, em competição com outras urbes europeias, ganha-lhes a palma de ouro. A última vez aconteceu há quatro anos ao arrebatar o prémio de Melhor Destino Europeu em 2017. A cidade está de parabéns e tal como o meu amigo italiano, milhares de turistas visitam, anualmente, a Casa da Música , Museu de Serralves, deslumbram-se com a igreja e a torre dos Clérigos, fazem “selfies” no Palácio da Bolsa e diante dos azulejos de Jorge Colaço na Estação de S. Bento, na Universidade do Porto e no Centro Português de Fotografia, ou as galerias Mira Fórum, em Campanhã (onde estão sempre a acontecer mil e uma coisas ligadas à fotografia e às artes performativas) mais as belezas do Douro e suas pontes, sem esquecer as delícias dos bons vinhos e gastronomia (em nenhum país da Europa ainda se consegue jantar tão bem e barato como na Invicta…) mais as artes e a cultura. A metamorfose acontece e só não vê quem não quer.

Estación San Bento
Arquitectura Porto

Sim, eu sei nem tudo são rosas, existem erros de palmatória, muitos velhos que nasceram e viveram toda a vida no centro histórico foram pura e simplesmente, obrigados a deixar as suas casas onde nasceram e viveram para os “investidores estrangeiros”, na maior parte dos casos, fundos de investimento construírem apartamentos T0 e T1 para Alojamento Local apenas acessível para turistas mais ou menos endinheirados. Uma vergonha, tal e qual, como aconteceu em algumas cidades com dimensão europeia, Lisboa, Barcelona, Veneza…

 Antes da pandemia, bastava dar um pulo à Baixa para ver a regeneração urbana, a quantidade de guindastes no alto das fachadas dos prédios muitos deles até há alguns anos em ruínas ou abandonados, tropeçar nas ruas sempre cheias de turistas, descer a Rua das Flores, porventura a mais bonita da cidade ou subir Mouzinho da Silveira e perceber a revolução urbana levada a efeito nos últimos anos. E constatar uma certeza: o turismo já não é apenas sazonal, acontece todos os meses do ano e contribuiu para mudar radicalmente a face urbana da cidade. Queira-se ou não o Porto do séc. XXI já não tem nada a ver com o Porto cinzentão e triste do século passado, onde era quase proibido circular à noite em Sampaio Bruno ou em Sá da Bandeira, ruas desertas após o fecho dos escritórios e comércio, passo apressado até à paragem do autocarro. A cidade adormecia. Até ao dia seguinte.

Vello Porto
Ponte de Oporto

Quanto às artes pouco ou nada acontecia. Existiam muitos cinemas que, devido às modas e à contínua desertificação da cidade foram fechando portas; algumas peças de teatro de revista no Sá da Bandeira, meia dúzia de galerias de arte, com papel de destaque para a pioneira Alvarez do pintor Jaime Isidoro e a galeria 2, mais a “111” do coleccionador de arte Manuel de Brito, em D. Manuel II, sem esquecer muitas outras que, tiveram vida efémera, como, por exemplo, a galeria Abel Salazar (do pintor João Martins) na Rua do Barão de Forrester, à Ramada Alta.

E depois, existiam algumas instituições culturais que, contra ventos e marés, souberam resistir à Censura e ao Fascismo: o TEP de António Pedro, cujo teatrinho de bolso nunca devia ter sido demolido; o Cineclube do Porto e “Os Modestos”, cujos edifícios em ruínas cederam a interesses hoteleiros; a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, mais o Clube dos Fenianos Portuenses, Ateneu Comercial do Porto, Teatro Universitário do Porto, o Círculo de Cultura dos Operários Católicos do Porto, o Orfeão do Porto, o Museu Nacional Soares dos Reis que, entre outras actividades expositivas acolheu, em meados da década de 70, o Centro de Arte Contemporânea (CAC) orientado pelo crítico e historiador de arte Fernando Pernes cuja persistência e dinamismo o Porto muito devem no aparecimento do Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

Oporto de noite
O Porto

Sem agenda cultural digna de registo só restava aos portuenses uma opção para quem queria (e podia) admirar arte, pintura, escultura e fotografia ou assistir a concertos: viajar até Lisboa, apanhar o comboio “Foguete” (cujo bilhete à época custava 500 escudos, 2, 5 euros actuais) e rumar até à Fundação Calouste Gulbenkian cuja actividade cultural e filantrópica continua ontem como hoje a ser assinalável e merecedora de todos os elogios.

 Na memória retenho um facto histórico e revelador da falta de investimento na educação pela arte, conhecimento e consequentemente, no afastamento do grande público para a fruição cultural. Em 1983, no âmbito do Festival de Música da Póvoa de Varzim, o Teatro Rivoli abriu portas para um recital com o grande pianista Alfred Brendel  (n. 1931) já na altura laureado e afamado intérprete de Mozart, Beethoven e Brahms. A sala estava a meio gás e soube depois, apenas foi composta graças à presença de algumas dezenas de espectadores vindos de Lisboa que, quando souberam da presença de Brendel no Porto, alugaram um autocarro e vieram à Invicta ver e ouvir o famoso pianista. Passados alguns anos, em 2005, Brendel veio à Casa da Música para inaugurar a temporada de piano e a Sala Suggia encheu-se de público entusiasta. E em Outubro de 2018 o lendário pianista austríaco – que entretanto abandonou os palcos – voltará à Casa da Música para uma palestra recital intitulada “On Playing Mozart” e desta feita, desvendar alguns dos segredos da sua longa carreira artística e referência mundial do piano. Tenho a certeza que o concerto será bastante concorrido.

Volvidos alguns anos não foi só a urbe que mudou. O modo de encarar e fazer cultura entrou nos hábitos do espectadores. Tudo é diferente. As salas de teatro, os espectáculos de artes performativas e os concertos estão quase sempre lotadas, as exposições têm um público fiel, o Centro Português de Fotografia, o Teatro Nacional S. João, Serralves e a Casa da Música são destinos frequentados por milhares de visitantes. 

Como não podemos perder a memória, será da mais elementar justiça evocar Paulo Cunha e Silva , um visionário da Cultura, das Artes e das Ciências, um homem sábio que seguiu à risca um dos pensamentos do grande Mestre Abel Salazar (“um estudante de Medicina que só estudou Medicina nem Medicina sabe”) e que cruzou as artes, todas as artes e que colocou a Cultura como centro de toda a sua vida e pensamento. Depois dos “anos de chumbo” levados a efeito por RR (um dos períodos mais negros na história do Porto…) a cidade elegeu,  pela primeira vez, um vereador da Cultura à altura dos seus pergaminhos, cujo modo de observar a “cidade líquida” marcou para sempre as artes, o modo de programar culturalmente uma grande metrópole.

Sim, o Mundo Mudou. O Porto também. Eu prefiro o Porto de hoje ao Porto de antigamente.

(”O Porto da minha Infância” é título de um filme de Manoel de Oliveira. E também homenagem ao cineasta que amou o Porto).

Manuel Vitorino

Todas as fotografías deste artigo son de Pixabay

Manuel Vitorino

Manuel Vitorino

Jornalista

Nasceu no Porto (Portugal). Estudou História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e possui a Pós-Graduação em Direito da Comunicação, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Escreveu durante anos sobre cinema no jornal «O Primeiro de Janeiro» e depois, trabalhou quase 25 anos, no Jornal de Notícias. Depois da cidade, gosta do Futebol Clube do Porto,  mas também de caminhadas (adora o vale do rio Bestança, no Norte do País) e viajar pelo Mundo.
A Galiza é uma região onde gosta sempre de voltar e a Itália o seu destino de eleição. Adora Arte, música clássica, mas também música popular, cinema e ópera, museus, cidades com património. E escrever sobre as cidades, as suas gentes, gastronomia, culturas e tradições.

O Douro de Torga continua belo

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