Ou quando os caminhos do céu se fazem… no chão.

Sendo muito mais do que isso, a Galiza é, para mim, privilegiadamente, um caminho. Um campo. De estrelas. A estrada. Rota do céu percorrida no tapete castanho e verde do Minho, da Galiza. Duas vezes fiz o caminho de Santiago a pé e recordo dele o meu olhar. Porque o olhar de cada um é diferente. Quem vê, realmente, O Caminho? Não haverá um caminho para cada um? Não verá cada um o seu? Quantos terão visto este telhado como eu? Quem o terá olhado? Existirá, ainda, o telhado? Já não recordo em que povoação o destaquei, em que terra a minha câmara o registou. O amarelo da parede parece reflectir a luminosidade da nuvem ou vice-versa, e ambas plasmam a cor da gema com açúcar com que me presenteavam em pequena. Entre um e outro dourado, o azul.

Terá sido num dos raros momentos em que elevei o meu olhar, que me enamorei desta parede, destas telhas. O caminho exige que os olhos se concentrem no chão. Os pés reclamam equilíbrio, a coluna também, e a âncora que nos segura à terra não pode dispersar-se no azul.

Curiosamente, no caminho de Santiago não se olha muito o céu, é outro o campo das estelas, porque o esplendor à volta de quem passa é tão exuberante, tão diferentemente atraente, que o olhar se compraz no horizonte em torno. Umas vezes mais contida e austera, a paisagem, outras mais voluptuosa, mas sempre cativante. Ora convida à interiorização, ora à manifestação, mas não é o céu, na sua elevação, que atrai os olhos. Traz-se o céu para baixo. Ou olha-se neste, o reflexo daquele, como num espelho ou num rio sólido.

telhado

Recordo-me de, na altura desta foto, ter escrito no caderno que sempre me acompanhou, algo parecido com isto:

Ao décimo dia, o céu aproxima-se, a cal aclara-se, o amarelo doira-se, a palavra transforma-se, o encontro dá-se. No silêncio resplandecente do impulso eléctrico, por um fio, tendo como testemunha o azul.

Era isso que eu queria dizer e aqui encontro neste parágrafo. Ali, o céu não é protagonista, mas testemunha de um teatro onde a Natureza ou a obra humana alternam na atenção obtida.

À noite, antes de adormecer, o peregrino abraça a memória do dia como faria a um santo. Adormece no abraço.

Risoleta C. Pinto Pedro, Lisboa

Risoleta C. Pinto Pedro, Lisboa

Colaboradora Portuguesa

Risoleta C. Pinto Pedro, nascida em Elvas, é autora nas áreas do romance, novela, conto, poesia, teatro, ensaio, crónica periodística e radiofónica (Antena 2), conto infantil e BD, assim como ópera, canção, cantata e musical, tendo escrito libretos a convite dos compositores Jorge Salgueiro, Paulo Brandão e Helena Romão, com incursões também na escrita para dança (Companhia de Dança Amalgama). Tem mais de vinte obras publicadas, para além de colaboração em revistas, catálogos, manuais e colectâneas. Na ficção recebeu o Prémio Revelação APE/IPBL, O Aniversário, 1994; Ferreira de Castro (A Criança Suspensa 1995), tendo sido duas vezes distinguida na poesia pela Sociedade da Língua Portuguesa. Foi professora de Literatura em várias escolas, nomeadamente, e durante mais tempo, na Secundária Artística António Arroio. Tem escrito e feito conferências sobre as obras de: Fernando Pessoa, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Sebastião da Gama, Bocage e Jaime Salazar Sampaio, entre outros. Mais recentemente, tem estudado, escrito e publicado ensaio sobre a obra dos filósofos Agostinho da Silva (A Literatura de Agostinho da Silva, essa alegre inquietação, 2016) e António Telmo (António Telmo- Literatura e Iniciação, 2018), pela editora Zéfiro. Publicou, recentemente, três livros pela editora Sem Nome: Cantarolares, um Sabor Azul (poesia, 2017), Ávida Vida (poesia, 2018) e A Vontade de Alão (novela, 2019). No prelo, a sair no próximo Janeiro, uma novela a anunciar em breve, e em avançado trabalho editorial, dois livros de poesia, um deles já projectado para meados de 2022.

Blogue: http://aluzdascasas.blogspot.com/

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